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fome

no café da manhã eu penso na caneca do flamengo esquecida no escorredor faz algum tempo. no almoço, penso nos pratos que não comemos porque não tivemos tempos de aprender a cozinhá-los. no jantar, penso em como é estranho comer sem assistir a alguma reprise de seriado dos anos noventa. penso com a fome daquilo que já não existe mais. nesse apetite pelo vazio, vejo as mil dimensões românticas que pude criar em cada uma das refeições. enxergo cada uma e mergulho assim como mergulhava quando criança nos meus eus multiplicados pelos espelhos das barbearias de minha cidade. encontro em cada uma delas apenas um vestígio decrescente do que sou - ou melhor - do que poderia ser, até por fim me tornar nada mais que um ponto distante e irreconhecível.

na primeira imagem, fica clara a proximidade com a realidade; meu cabelo está ali, minhas rugas, sua sombra. na primeira, ainda consigo sentir vergonha do meu olho esquerdo meio fechado e ainda acho graça do jeito que você pronuncia meu nome. na segunda, em que encaro minha nuca, já não tenho mais as dúvidas de ontem e os contornos da minha boca não desenham senão um sorriso vacilante de quem não tem com o que se preocupar enquanto você assiste tv deitada em meu colo. da terceira para a frente, somos formados por contornos que nos desenham de maneiras idealizadas, voluptuosas, irresponsáveis. só nos interessa nós mesmos em pontos e caminhos infinitos que não nos levam a lugar nenhum.

penso e uma voz me salva do transe. uma pedra invadindo os espelhos e deixando somente os cacos refletindo os fragmentos daquilo que me sobrou. um restaurante, uma mesa para um e um cardápio na mão. é o garçom quem me pergunta qual prato eu desejo e não sei o que pedir. hesito e não invento mais.

peço um arroz com filé e fritas para viagem.

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