Tenho mais culhões que todos homens que conheço e sempre achei 'não' uma palavra patética. Prometi-me, porém, num passado não tão distante, que a lúxuria é uma peça removível. Segurar tantas mãos alheias deixou marcas entre meus dedos. Meus lábios já ressecaram e com eles, meu sorriso.
Não sacrificar a paz interna por prazeres momentâneos.
Onde, porém, os planos mudaram?
Quiçá, com aquele amor que já me soa tão antigo, no qual expeli naturalmente a única possibilidade que me permiti ter com a felicidade. Desejei pela primeira (e última) vez ser feliz, como todos querem. Lembro do meu choque e como tudo de repente pareceu uma idéia absurda e então simplesmente abandonei-a.
Desejo a felicidade cimentada no que sou, sob minha única influência, na forma de um sorriso egoísta.
Quais das verdades me pertence? Em que boca minha alma foi parar?
O céu de Belém se cobre de nuvens que desabam metodicamente todos os dias. Pós almoço e antes do sol se ir. “É sagrado”, repetem as senhorinhas que me enchem de bolo de tapioca e suco de cupuaçu. Arma-se sem ruídos, discreta. Aos desavisados, vem de surpresa. Aos locais, de alívio. “Nada mudou por aqui, mas também, o que muda?”. Alguns reclamos, tal como são condizentes da rotina, mas aí dela se não viesse. Aí de tudo que não queremos não acontecesse. Sobre o que escrevia, sobre o que eu derramaria minha chuva?
(...)
Minhas nuvens percorrem distâncias e tentam voltar para este lugar que aprendi a chamar de casa. Por ai, onde um ama e outro odeia. Nesta cidade que leva ‘garoa’ em seu apelido e está seca, de todas as maneiras. Penso no que me espera. Penso no que poderia acontecer se não voltasse. É do meu sangue cigano. A insistência da partida, o ódio pelas despedidas. "E se, e se...?" O telefone brilha constantemente cheio de palavras que não quero ler. De um e de outro. Olho a janela desse quarto de hotel que compartilho com fantasmas. Sinto como se minha pele jamais fosse secar aqui. Torço pra que não aconteça. Por via das dúvidas, lá estou eu, pós almoço e antes do sol se ir, roubando a água de Belém e carregando dentro de mim. Na esperança de descarregá-la aonde mais se precisa. Em um, para que tudo mude. E em outro, pra que nada mude.
Eu deixo a janela aberta porque sei que você sempre sente calor. Mesmo quando já foi embora. Assim, limpo a casa sem receio do que posso encontrar perdido dentro do sofá ou atrás da estante. A janela aberta me ajuda lembrar que não há muito você estava aqui, esparramado por todos os cômodos, e fácil assim o medo se desfaz. Relembro-me de seu corpo desnudo ou com aquela calça que eu insisto em querer lavar. Assim como seu prato, seu cabelos e parte de seus erros. Já te vejo em todos os lugares, menos em mim. E a gente sabe disso. Mas não, não é triste, e nunca vai ser triste. Foi o que pedi.
'não faça bem, mas que também não faça mal (...) que pelo menos dure enquanto é carnaval'.
Te cantei esses versos, mesmo sem que você entendesse. E isto também não é ruim. Essa coisa de a gente às vezes não se entender. Eu, que nunca me permiti calar, agora sou obrigada porque as palavras vem pelas metades ao meus lábios. E você questiona meu silêncio com uma curiosidade felina. Olhos como de um siames, de ressaca acumulada e enigma anil.
Te encaro de volta sem medo algum. E sorrio porque ninguém jamais terá idéia o quanto isso quer dizer.
Deixo a janela sempre aberta, porque você sente calor. De contrabalanço, o coração fechado, pra você não sentir frio demais.
Ontem à noite dormi com Chico me perguntando para 'onde vai o amor, quando o amor acaba'. Não deu outra, acabei sonhando com o poço dos amores, dos amores não-queridos. Todo o universo existia lá - ou existiria cedo ou mais tarde - seja projetor ou seja alvo. Romance platônico pelo professor bonito, a gostosa do bar que você comeu na madrugada quente de 2002, o amor de werther, as paixões de bovary e até seus pais, tão santos e castos lá estão, bêbedos e chorosos.
A consistência, porém, não me era viável figurar. Ora tosco e grudento, ao ponto de não ser mais desejado, ora ralo e escorregadio, da maneira que não possa se fixar na pele e em conseqüência, não ser sentido. Apesar disso, me lembro do aroma, do gosto de mar. O fundo, quando meus pés o alcançavam, se desfazia em areia movediça. Mergulhei para entender melhor e veja só, bailarinas sobreviviam com seus passos ensaiados e sapatilhas rosas. Aprendi com elas que para sobreviver naquele mundo de desprezo, era necessário leveza.
O poço era enorme, rodeado de pessoas que ainda não haviam sido tomadas pelo trauma do amor não-desejado. Estas jogavam seus bens mais apreciáveis, para 'saciar a sede dos mal-amados'. Batons, receitas de bolo, botões vermelhos, pára-raios, maçãs-verdes, de tudo era jogado para manter a paz amorosa. Um ciclo, entende?
Já tem tempo que esse infernal processo dominical me acompanha. A maquiagem mal tirada, corpo pesado, os lábios que despertam mais vermelhos que o comum. A manhã incrivelmente longa e sem sono. Me distraio com o que posso, todas as banalidades. E encarando a parede e segurando o choro, eu percebo: a casa ainda tinha confetes. Resquícios de uma festa que nunca existiu. 'Aqui é festa amor, e a tristeza em minha vida', cantavam no palco um pouco a mais de uma semana. E eu sempre achei que essas palavras diziam tanto, mas não era verdade. Nunca houve realmente a festa, só a sujeira no dia seguinte. Os malditos confetes que continuavam grudados pela casa, mesmo com todo o esforço, toda atenção, era sempre possível encontrá-los perdidos em todos os cômodos. Confetes estes que você prometeu vir tirar, e isso nunca aconteceu. Principalmente porque eu não queria que eles sumissem. Eu gostava de encontrá-los, me dava uma motivação pra continuar. Mas a casa nunca foi só minha, e o incomodo era grande. Todo mundo dizia que não fazia sentido, que precisava tirá-los de uma vez. Eu entendia, eu concordava mas continuava insistindo. Hoje, eu tirei todos eles. Cada um. Com ajuda, claro. Por que a casa não é só minha, apesar de eu ser a única culpada por terem ficado aqui por tanto tempo. Não mais. Nunca mais.