também existe música na agulha riscando o final de um disco sem parar. aprendi a ouví-la ao me manter concentrado em tudo aquilo que não importa. consciente da existência daquilo que não precisa ser notado. aprendi a fazer-me presente assim, ocupando os espaços de minha mente entre jogos bobos com o indiferente e viagens de ônibus por uma copacabana engarrafada. tentar prever o plano de vôo da fumaça que sobe do café; replicar com a caneta no papel o caminho do pingo do suor do copo gelado de cerveja a escorrer pela borda; sorrir para o moço do ônibus vizinho. nadas que fazem com que as palavras em minha cabeça se calem. nadas que falam comigo e me ensinam lições sobre ser vão. a fumaça se desfaz, o pingo seca ou cai, eu sigo. meus pensamentos silenciam nas mortes dos nadas e, como se servindo de alimento, deixam ressurgir palavras que foram ditas em épocas que também já viraram nada. palavras desesperadas como as propagandas de vendedores de peixe em final de feira. eu sigo para aprender que a inércia do vazio da vida é onde escuto o barulho que me basta. o barulho que invento.
cruzar o estreito de gibraltar é iniciar a construção de mais uma maldição para nós, os nascidos ao sul. adentrar terras desconhecidas, com um idioma que sempre nos soa diferente, como achando-se convidado é um ato de ingênua irresponsabilidade. não importam as nossas armas, não importam os tamanhos dos nossos exércitos, não importa o quão forte nos pensemos, pois a única certeza é a de que derrota virá. em algum momento ela virá. há naquela terra um povo que sabe fingir ser pacato. um povo que sabe dissimular a rendição pelo tempo que for, até chegar o momento do contra-ataque. são, acima de tudo, silenciosos estrategistas. e no momento em que se levantam e se mostram enfim indóceis, bradam as suas palavras bem colocadas em orações bem construída, levantam suas espadas e lanças bem afiadas e põem abaixo tudo o que for interpretado como invasão. naturalmente conhecem as regras da terra melhor e festejam as reconquistas enquanto nós, os mouros, fazemos o caminho contrário do estreito. nós, ou mouros, no caminho de volta nos contentamos com a ilusão da posse, a ilusão do reino e percebemos o quanto este estreito se alargou e torna a travessia de agora muito mais penosa. enquanto isso, ao norte, num processo de reconstrução qualquer, seguem expurgando o máximo que podem das memórias de nossa presença. querem voltar a ser como eram, pacatos e dóceis. limpam quase tudo, pois, de toda nossa ilusão, ficam apenas as empanadas, algumas outras palavras e o achar graça do nosso sotaque ao falarmos palavras como "sete".
invadiram meu quarto. invadiram minha solidão. aquele casal na janela do segundo andar, ao surgir ali, meio de supetão, enquanto eu olhava só para o vazio emoldurado pela cortina. o silêncio dos meus pensamentos parou sua amplificação ao ver surgir da penumbra do fundo do quarto aquele casal de dorsos nus. chegaram em alta madrugada, sem pudor, claramente afetados de um carinho mútuo e mudo. não diziam palavras e, da maneira mais clássica possível, eram apenas com os olhares que travavam um diálogo próprio, incompreensível para qualquer ser além dos dois. tentei entendê-lo, mas minhas lentes de contato não eram capazes de decifrar aqueles códigos. um olhar para baixo, outro para o lado, buscando algo que eu não via, os dois olhares se conectarem, dois sorrisos. uma frase completa que eu não entendia. eles não me percebiam. eles não percebiam nada ao redor, com exceção da fumaça do cigarro que pairava por entre os olhares. cigarro que os dois teimavam em dividir com uma velocidade considerável. talvez movida pela ânsia de voltar ao breu de onde saíram. nunca achei que fosse sentir inveja de um ser inanimado como um cigarro, mas assim foi. ganhei afeição por ele ao vê-lo sambar pelos dedos, repousar por entre os lábios, gerar fumaça só para ser notado. queria aquilo tudo. queria ser aquilo tudo. transfigurar-me em fumaça e fazer casa ao me espalhar por seus corpos. mas não. sou só um homem concreto, por vezes metafísico de pensamentos silenciosos e sem a fumaça de um cigarro. voltaram-se a escuridão acolhedora e desistiram do cigarro. deixaram-no pela metade no peitoril da janela. aceso. um farol para meus desejos. até que eles me silenciem de novo.
fico parado. calado. quieto. observando ao redor o som que aumenta, os tons espumantes que crescem com o colarinho bravejante das cervejas que descem. ouço argumentos que poderia dizer, ideias que poderia criar, vontades que poderia ter. mas calo e olho nos olhos esperando uma brecha cinematográfica para dizer qualquer besteira, mas calo. espero passar a ânsia de me colocar, de soar esperto, e a vejo ser levada para outros mares, outros ares. suspiro me lembrando daquele samba. calo e ouço as vozes que poderia ter. simulo a risada ao entender a meia piada. simulo o tom sério a entender o meio argumento. simulo a presença enquanto sou só meio mundo. meio aqui, meio aí. carrego o respeito aos mudos por saber o esforço de falar e tento não decepcionar. olho para o copo, reflito sobre algo relevante e chego a conclusão de que nada sei além de alguns discos e umas poucas histórias sem graça que vivi. sou trivial como esta conversa. como esta noite. não quebrei braços, não fugi de casa, não tive mil amantes. só tenho que pegar um ônibus. digo qualquer besteira que passa. todos riem e me sinto bem. me sinto mais completo. definitivamente mais completo que o copo, mas calo novamente. goles me dão frases, me dão ideias, me dão mais vontades de estar em outras mesas com outros copos. penso em como estou feliz esperando o dia de esperar o ônibus. me calo com um sorriso besta no rosto, um sorriso mais úmido que o copo seco. a mesa silencia e perguntam qual o meu nome. calo a minha felicidade de não querer estar ali. de poder estar aí. respondo e novamente o barulho prossegue.
eu nasci por entre as montanhas da serra fluminense. aprendi desde pequeno que o sol se põe mais cedo por aqui. os picos, os morros, as montanhas, tão belamente altas, rivalizam com o céu e deitam sombra pela cidade ao bel-prazer de eles próprios. aprendi desde cedo que, aqui, nós sempre fomos reféns das montanhas. cresci sem saber o que é horizonte. para olhar o céu, tinha que inclinar o pescoço e buscá-lo por entre as muitas nuvens. buscar ar para respirar para fora daquelas sufocantes grades cobertas de musco e verde. era preciso querer ver o céu. durante o inverno, ele se escondia sobre as neblinas que davam um ar de pudor às pedras e silenciavam os pedidos que imaginávamos subir aos céus. era preciso imaginar ver o céu. ele não era tratado como um brinde compensador, como se dado de graça no final de festa de aniversário de um ano. havíamos de querer notá-lo para sabê-lo, na minha terra. era preciso vencê-la. portanto, talvez minha terra não seja de grandes vislumbramentos, mas sim de uma constante de esperança. onde há montanhas, há topo. há um limite a ser rompido. há outra visão. era no cocuruto das pedras que podíamos transver nossa terra. olhar para nós mesmos com a arrogância das pedras que veem tudo. olhar para baixo e ver o vale, o contorno das ruas, o lugar onde me deitava para ver o céu. de lá de cima, tudo era horizonte. tudo era possibilidade. eu me pensava nuvem.
quando fui morar com o mar, me afoguei. havia horizonte demais para mim. eu. eu que sempre fui pedra.