Textos de Bernardo

Sem Relógio de Pulso

desfilam na passeata apertada
desse trem apertado
aquele tempo lacuna
  que exige corpo dentro do vácuo
aquele tempo fatia
  que necessita ser consumido mesmo azedado
aquele tempo cronômetro
  que otimiza o agora sem nem acabar o anterior
aquele tempo dinheiro
  que monetiza o não saber do porvir

enquanto esses tempos passam
meu tempo fica
  como caiçara em cidade grande
conta seus peixes, seus grãos
  um a um
    passando essa preguiça
    de gente do
    litoral

meu tempo pede um tempo
pra poder respirar
  em meio a esses tempos afobados

precisa ver correr um tempo pouco
pra se perceber só
  só um tempo
  um pouco de tempo

destes de esperar o ponto certo chegar
deixar o hoje morrer
preparar o amanhã para
chegar com calma
  com tempo
com a calma de ter tempo

90 Minutos

O amor acaba.
Mesmo que dure uma vida inteira,
um dia ele acaba.

Um jogo de futebol acaba
assim como o amor acaba,
com direito a mesa redonda
(aquele na da televisão
e este na do bar mais próximo)
reavaliando lances
com fofocas triviais
sobre quem bebeu caipisaquê demais
antes de um clássico
ou no aniversário da sogra.

Quando o amor acaba,
ele não dá aviso prévio
nem cobra seguro desemprego.
Ele simplesmente sai sem ser visto,
exatamente como a arrumadeira
de um quarto qualquer o fez agora,
enquanto você lia isto.

Quando o amor acaba,
ele não vai de moto, carro ou jato.
O amor domina tecnologias
impensáveis para nós!
Tecnologias que ainda só não descobrimos
porque estávamos nos acabando de amar
um amor sempre por acabar...

Quando o amor acaba,
ele se teletransporta
sabe-se Deus para onde,
mas é tão longe, tão longe,
que sempre nos dói muito
buscar o reencontro.

O amor é um potinho de Nutella
guardado por dois
só para os dois,
e, como tudo que leva Nutella,
um dia ele acaba.

O amor acaba
igual a um jogo de futebol
que acaba.

Estrada de Chão

estou nessa estrada de barro batido
sustentado por um par de chinelos já marrom
olhando para o resto do caminho
cogitando o que vem depois da curva
escondida pela praga surgida no pasto
com meu passo calmo a levantar poeira vermelha
com a delicadeza do respeito ao chão

ao lado
buzinas e motores
voam a se perder de vista
numa via expressa
seguem rumo a lugar nenhum
a atormentar
o canto do pássaro que eu ouvia

Arrecifes

Vou nadar até ali,
encostar no quebra-mar
pra ver o pôr do sol,
guardando uma braçada
pra cada dia que nos trouxe
até esta praia
cheia de cascalhos
no lugar de areia fofa.

Vou sem pensar na volta,
contando com a câimbra
na batata da perna direita
para me afogar de vez.
Fazer-me virar manchete
  para os jornalistas.
Fazer-me virar lenda
  para os amantes.

Interestadual

Um homem só.
Um avião só.
Um corpo só.
Um maquinário só.
Uma queda só.
Uma viagem só.
Um desencontro só.
Um encontro só.

Nós
  a sós
pelo mesmo ar