ábaco cinza

três beijos na bilheteria do metrô
    barrados pelo vidro gélido
    necessariamente blindado

dois "como vai?" no cabo do telefone
    enforcados pela voz serviçal
    de alguma não-Juliana

o aperto de mão com um voluntário da ong
    carregado numa tromba de ternos
    corrente da avenida desconhecida

aquela mensagem sempre sem resposta

zerar
  reaprender a contar
    refugiado
  nos cantos das maritacas

mestre jonas

minha baleia pirata
um reflexo caolho
pilhando o oceano
deglutindo tesouros
tudo só pra mim

lagostas
cardumes
ar salinizado
destroços mil

no convés por entre costelas
estas agulhas de crochê
costuram algumas últimas vaidades
quentinhas

no convés por trás do reflexo
me escondo das sombras
de tubarões
e de ônibus articulados

abaixo do horizonte, acima do mar

me sinto pesado à luz da manhã,
um lembrete da vida lá fora
um alarme reverso

abro a porta do microondas,
os apitos, o apertar dos olhos,
o cheiro do café solúvel

de costas pro sol, de frente pra varanda,
o que me impede da névoa
é a tela em rede, com seus nós

à beira do mirante, sou
    rarefeito
    alpinista
    delirante

pesca

noite aberta
o anzol espeta
a última chance
suspensa no ar

olhar que flerta
sorriso afeta
o último lance
dois a rodar

fuga esperta
lá feito seta
luz e nuance
cama, um mar

por tanta oferta
bateu sua meta
mais um romance
pra se imaginar

ela, roberta,
foi tão seleta
cedeu ao avance
de um tolo osmar

futuro alerta
ferida aperta
por fim descanse
o seu calcanhar

a elegância das janelas abertas

as curvas nos colocavam nos caminhos como mãos em concha. ao redor um verde de mesma cor mas com significados diferentes para cada um. no fundo, ambos com algum saudosismo. saudade um, do tempo de adolescência gasto no trabalho por aquelas terras com a fazenda da família. o outro, dos retiros na infância sob a saia da avó enquanto se empanturrava com as delícias e corria de pés descalços pela praça com o resto da molecada. hoje, enquanto retomam essas estradas antigas por mais uma vez, os dois tem motivos de sobra para olhar para o verde e se lembrarem do passado. seguem no carro ao som de conversas amenas e música baixa. cada um contando para o outro algumas de suas próprias memórias. a última causada pelo telhado que cedeu na casa grande da antiga propriedade da família. o telhado colonial, suas ripas e caibros cederam em seu pico, reduzindo o desgastado alaranjado das telhas por um negro buraco vazado. pensamos nas chuvas, pensamos no sol, pensamos no desgaste e no pouco tempo de vida daquela casa. mas, se por um lado a sua proteção tinha cedido, havia ainda assim um ar de vida naquela casa. as janelas estavam abertas. janelas verdes levemente desgastadas que, com suas abas elegantes, se sobreponham a um branco hachurado. levando e trazendo o ar de uma época de cabeças, estas também, com seus respectivos telhados quebrados. o retrato daquilo que nós dois não fomos nos levava a lamentar não o futuro não trilhado, mas sim a existência daquilo que ao menos o possibilitou: nossos parentes. a herança se pôs silenciosamente em nossos colos enquanto seguíamos rumo a mais um almoço de natal. iríamos dividi-la, saboreá-la e então voltar para nossas casas protegidas.