inventamos tanto
para nos vermos aqui
facas
abridores de lata
isqueiros
e termos de uso
o domínio de tudo
todos os sons
e das palavras
não pronunciadas
só para nos vermos aqui
a sós
nos mirando em espelhos
de sangue e lítio
feito narcisos
afogando a nós mesmos
tudo aquilo inventado
e tantos outros nomes
para sempre
velados
entre quem fui
e quem serei
sigo refém do tempo
dos caprichos do tédio
abatendo futuros
com estilingue em punho
bacharel em projéteis
num calar-se profundo
um silencioso farol
gira e gira em si
a enganar
as pedras pelo caminho
pequenas silhuetas de certezas
em rotas de colisão
deste cruzeiro-apartamento
navegando contra a realidade
agressora do casco
da piscina, entre drinks e tédio
suspiramos o dia
velho e ido
enquanto o gelo derretia
assim como o amanhã
somente os cães ouvem
o incessante e ignorado apito
prenunciando naufrágios,
as desgraças
para fora deste abraço casto
tomado por nós
como bóias salva-vidas
(escrito durante a pandemia, em Julho de 2021 em Niterói)
as noites de quarta-feira de cinzas são veladas por algum tipo de medo, algum tipo de aflição. uma eletricidade que silenciosamente nos atravessa a todos.
amanhã, inevitavelmente, a realidade irromperá.
dentro do que ainda era sonho vivo, eu me tornava um ser de lama. me debatia entre outros que, num último esforço para resguardar a fantasia, se festejavam debaixo do primeiro e último temporal daquele carnaval. todos os sorrisos servindo de faróis arrudiavam uma deusa eleita. detentora de um talismã, ela bailava de dorso nu, com guias metálicas cruzadas sobre os seios e um pano de lantejoulas douradas cobrindo-lhe a cabeça e os olhos. ao pedir sua bênção, ela me brindou com uma anunciação. me atestou haver um futuro qualquer para além do barro que carrego como rastro de mim.
o barro é terra, resseca e destrói.
há que encharcá-lo, torná-lo argila e moldá-lo
àquilo que creio ser, àquilo que ela vislumbrou em mim.
dentro de outro sonho, meus olhos caranguejos vagavam de um lado a outro. buscavam os pares de ontem por entre a lama que engolia tudo. o ruidar do fim ao redor exigia seus abraços para me consolar, antes de acordarmos amanhã, sem imagem e sem som. quando os encontrei, percebi que suas garras também me buscavam e ouvi tudo o que queria ouvir. entre nós, gozamos um silêncio inventado e que abria espaço com fome de tudo o que poderia vir a se tornar.
maluco, eu danço uma última ciranda, fecho os olhos e vejo tudo vermelho de novo.
não acordo e nunca mais acordarei. não por querer sonhar um carnaval eterno, mas por querer seguir tendo fé nos tantos segredos que aquelas ladeiras ainda escondem para mim. neste reino de encantaria, me remontei aos poucos, catando as peças por entre os intervalos das notas do frevo. reaprendendo que as coisas muito boas vão embora mais cedo e relembrando métodos de sobrevivência ao cruzar todo os quatro cantos de mim.
aqui, na encruzilhada que sou, há o caos, o céu, o sol e o mar.
e uma incessante ideia de que, ali, eu conseguiria ser feliz toda manhã.
cravejados sob meus pés
fragmentos pontiagúdos
da sua última declaração de amor
sílabas estraçalhadas
numa curva qualquer
das memórias daquilo que pensávamos ser
o sol a pino
cega com o brilho
dos destroços da sua voz vidro
o motor-cabeça, desligo
e sigo
em algum caminho
sem notar minhas pegadas de sangue
invento da sobrevivência
algum tipo de brio
frio