as predições dos mouros

cruzar o estreito de gibraltar é iniciar a construção de mais uma maldição para nós, os nascidos ao sul. adentrar terras desconhecidas, com um idioma que sempre nos soa diferente, como achando-se convidado é um ato de ingênua irresponsabilidade. não importam as nossas armas, não importam os tamanhos dos nossos exércitos, não importa o quão forte nos pensemos, pois a única certeza é a de que derrota virá. em algum momento ela virá. há naquela terra um povo que sabe fingir ser pacato. um povo que sabe dissimular a rendição pelo tempo que for, até chegar o momento do contra-ataque. são, acima de tudo, silenciosos estrategistas. e no momento em que se levantam e se mostram enfim indóceis, bradam as suas palavras bem colocadas em orações bem construída, levantam suas espadas e lanças bem afiadas e põem abaixo tudo o que for interpretado como invasão. naturalmente conhecem as regras da terra melhor e festejam as reconquistas enquanto nós, os mouros, fazemos o caminho contrário do estreito. nós, ou mouros, no caminho de volta nos contentamos com a ilusão da posse, a ilusão do reino e percebemos o quanto este estreito se alargou e torna a travessia de agora muito mais penosa. enquanto isso, ao norte, num processo de reconstrução qualquer, seguem expurgando o máximo que podem das memórias de nossa presença. querem voltar a ser como eram, pacatos e dóceis. limpam quase tudo, pois, de toda nossa ilusão, ficam apenas as empanadas, algumas outras palavras e o achar graça do nosso sotaque ao falarmos palavras como "sete".

incursão por um cigarro


invadiram meu quarto. invadiram minha solidão. aquele casal na janela do segundo andar, ao surgir ali, meio de supetão, enquanto eu olhava só para o vazio emoldurado pela cortina. o silêncio dos meus pensamentos parou sua amplificação ao ver surgir da penumbra do fundo do quarto aquele casal de dorsos nus. chegaram em alta madrugada, sem pudor, claramente afetados de um carinho mútuo e mudo. não diziam palavras e, da maneira mais clássica possível, eram apenas com os olhares que travavam um diálogo próprio, incompreensível para qualquer ser além dos dois. tentei entendê-lo, mas minhas lentes de contato não eram capazes de decifrar aqueles códigos. um olhar para baixo, outro para o lado, buscando algo que eu não via, os dois olhares se conectarem, dois sorrisos. uma frase completa que eu não entendia. eles não me percebiam. eles não percebiam nada ao redor, com exceção da fumaça do cigarro que pairava por entre os olhares. cigarro que os dois teimavam em dividir com uma velocidade considerável. talvez movida pela ânsia de voltar ao breu de onde saíram. nunca achei que fosse sentir inveja de um ser inanimado como um cigarro, mas assim foi. ganhei afeição por ele ao vê-lo sambar pelos dedos, repousar por entre os lábios, gerar fumaça só para ser notado. queria aquilo tudo. queria ser aquilo tudo. transfigurar-me em fumaça e fazer casa ao me espalhar por seus corpos. mas não. sou só um homem concreto, por vezes metafísico de pensamentos silenciosos e sem a fumaça de um cigarro. voltaram-se a escuridão acolhedora e desistiram do cigarro. deixaram-no pela metade no peitoril da janela. aceso. um farol para meus desejos. até que eles me silenciem de novo.

supernovas e buracos negros

criar não é uma arte,
é uma consequência.

queria poder ser criativo
como as tantas estrelas que admiro durante a noite
mas dedico minha vida a lutar contra a gravidade
a carência
da minha situação
que me diz que
em vez de pó de estrelas
sou uma singularidade
sem som, nem luz
que me dê cor ou sentido, não
sou um ponto nesse inefável céu

perdido entre vênus e marte

abraçado ao vazio e a sua imensidão
tenho dificuldades de sentir meus pés na terra

ela é árida demais
de sentimento
ela é úmida demais
de tesão e castidade

no mundo em que estou, nesse, dos outros,
nada me apetece
nem vênus
nem marte

mesmo assim eu
sinto fome
de carne fresca
de suores noturnos

meu corpo não consegue conceber
a eternidade do espaço
e não se conforma com sua prisão
entre duas tão diferentes órbitas

vou me perder entre as estrelas

buscar constantemente
a felicidade me cansa

despido
deixo minha armadura e
me banho em seu rio de águas mornas

sem vontade e coragem de sair
o dia me despe
de suas luzes

sob as estrelas
ribeirinhas
as sombras me curam da compulsão
da busca por seu calor solar

nunca precisei buscar
o frio
agasalhado
corre em minhas veias
alheio às marés e suas luas

constante como uma chama
eterno quanto a galáxia