Janela aberta

Eu deixo a janela aberta porque sei que você sempre sente calor. Mesmo quando já foi embora. Assim, limpo a casa sem receio do que posso encontrar perdido dentro do sofá ou atrás da estante. A janela aberta me ajuda lembrar que não há muito você estava aqui, esparramado por todos os cômodos, e fácil assim o medo se desfaz. Relembro-me de seu corpo desnudo ou com aquela calça que eu insisto em querer lavar. Assim como seu prato, seu cabelos e parte de seus erros. Já te vejo em todos os lugares, menos em mim. E a gente sabe disso. Mas não, não é triste, e nunca vai ser triste. Foi o que pedi.
'não faça bem, mas que também não faça mal (...) que pelo menos dure enquanto é carnaval'.
Te cantei esses versos, mesmo sem que você entendesse. E isto também não é ruim. Essa coisa de a gente às vezes não se entender. Eu, que nunca me permiti calar, agora sou obrigada porque as palavras vem pelas metades ao meus lábios. E você questiona meu silêncio com uma curiosidade felina. Olhos como de um siames, de ressaca acumulada e enigma anil.
Te encaro de volta sem medo algum. E sorrio porque ninguém jamais terá idéia o quanto isso quer dizer.
Deixo a janela sempre aberta, porque você sente calor. De contrabalanço, o coração fechado, pra você não sentir frio demais.

da arte de observar besouros pela noite

abster-se de objetivos. voar a esmo em um trajeto circular centrado em uma fonte de calor e luz. não se importar com concorrentes. aprender a descobrir o salto no vazio. aprender a descobrir superfícies duras em colisões frontais. retrair as patas como proteção em luta com inimigos maiores. demonstrar as garrinhas como um último ato de rebeldia quando os maiores te capturam. defender-se de quedas bruscas. aceitar que quedas bruscas acontecem. agonizar por estar inerte em um mundo de cabeça para baixo. lutar para virar. sucumbir ou virar. virar. descansar após grandes batalhas. esperar o dia raiar sabendo que ele irá chegar. voltar para casa.

chegou a noite. no telefone, a voz do outro lado da linha ainda não entendia o que se passava ao ouvir:

eu voltei

farsas daquele dia escuro

na face
do dado
o número
pelo acaso
guardado

na face
do rosto
o futuro
pelo tapa
imposto

em face
ao susto
a solidão
de um orgulho
robusto

na face
do dado
o caminho
pela sorte
trilhado

fim da fase
    das farsas
    dos tapas

zen - parte dois

estamos ficando velhos e cada vez mais estúpidos.
  tratamos a inconsequência como objetivo final.
  traçamos metas para podermos deixar de prosseguir.

pensa:
  se o objetivo é que nada aconteça,
    o mundo
    conspira para que o faça.
      é o que lhe dá prazer, mostrar o quanto
      sempre, eternamente, cada vez mais

  estamos errados.
  errados por conta dos nossos erros.

  é um erro não conseguir parar de pensar em você.

networking

me intoxico nas suas palavras
as que não têm sentido
até não ver mais nelas qualquer forma

sem sentir o que me constitui
incorpóreo flui
como o trabalho e os dias e o dinheiro

fico sentado a esperar o momento certo
pra te capturar, te repetir pro mundo
e perpetuar o seu desprezo