Por que a alma beija seu espelho enquanto corre?
Escorre o seio vagando no museu da calma?
Ama o espanto que só escreve escondido?
Ungido é quem ainda ferve as mágoas no oceano?
Ano após ano em busca de um sempre que não anda?
também existe música na agulha riscando o final de um disco sem parar. aprendi a ouví-la ao me manter concentrado em tudo aquilo que não importa. consciente da existência daquilo que não precisa ser notado. aprendi a fazer-me presente assim, ocupando os espaços de minha mente entre jogos bobos com o indiferente e viagens de ônibus por uma copacabana engarrafada. tentar prever o plano de vôo da fumaça que sobe do café; replicar com a caneta no papel o caminho do pingo do suor do copo gelado de cerveja a escorrer pela borda; sorrir para o moço do ônibus vizinho. nadas que fazem com que as palavras em minha cabeça se calem. nadas que falam comigo e me ensinam lições sobre ser vão. a fumaça se desfaz, o pingo seca ou cai, eu sigo. meus pensamentos silenciam nas mortes dos nadas e, como se servindo de alimento, deixam ressurgir palavras que foram ditas em épocas que também já viraram nada. palavras desesperadas como as propagandas de vendedores de peixe em final de feira. eu sigo para aprender que a inércia do vazio da vida é onde escuto o barulho que me basta. o barulho que invento.
Morar num hotel é uma experiência singular. Você acorda, atrasada sempre. Culpa os 34 episódios de Simpsons que a Fox insiste em passar todas as noites, um documentário bizarro de qualquer canal ou todos aqueles filmes ruins que você só se permite assistir sozinha. Sozinha ou com os fantasmas que te fazem companhia. Seja qual o motivo, não se dorme bem. A cama é confortável, tem o ar condicionado moderno, janelas a prova de som e cortinas que bloqueiam até mesmo a claridade das ideias. Mas algo nessa imensidão branca, construída perfeitamente para praticidade e repouso, é desconfortante. Penso num cigarro e não se pode. Desejo uma cerveja e me nego abrir o frigobar. Permito-me sentir fome e toda vontade passa ao lembrar do tédio dos restaurantes. Convenço-me finalmente a sair. Um vestido bonito, cabelos soltos, maquiagem leve e estou pronta. Puxo as cortinas e vejo somente a chuva sob a fila de carros que atolam as ruas. Me desanimo uma outra vez. Envio mensagens, reviro e-mail, refaço a mala e desisto. Me entrego a branquidão do quarto e me permito escutá-los, eles, os amigos fantasmas. Um diz ter seu nome. Na minha mente, a voz tem seu sotaque. Discutimos. Rimos. Se aninha ao meu lado enquanto abraço o travesseiro e tento dormir. Outros fantasmas aparecem e tentam ocupar o mesmo espaço. Dos principais, três. Todos comigo. E ninguém ao lado. Assumem diversos formatos, sentimentos e sonoridades Mas sempre no mesmo tom: branco. Pálido. Tal qual como o quarto.
Finda-se agora uma era, vivida em três meses. Termino como a iniciei. Com a chuva que ninguém vê. Deitada numa cadeira de sol, livro no colo e celular protegido. Sob mim, a água que ninguém mais sentiu. A cada pingo, uma tatuagem. A gota correndo sobre a coxa, a água limpando a maquiagem e grudando a roupa ao corpo. A brasa, tal como magia, permaneceu acesa. As palavras do livro vazaram, eis ai toda a poesia como deveria: escorrendo pela pele. Insisti nos vícios e quando o frio veio, uma nova música se inicou, mais palavras, agora também no ar. Repeti como uma oração. "In fact I can't stop falling out. I miss that stupid ache".
Fechei os olhos e revivi tudo aquilo que me repartiu nos últimos meses. Todas as cidades aonde estive, todos os perfumes sentidos e quartos frios chamados inconscientemente de casa. Nada disso me preenche como deve, mas somado, ah, que história! Quantos anti-heróis dignos dos roteiros mais ambíguos. O gringo errante, o maranhense enfadado e o paraense constantemente atrasado. A moça de Macapá, os companheiros de trabalho, os amigos distantes, os romances mal findados. Os chocolates deixados na porta do quarto, o bilhete misterioso na recepção e o beijo recebido naquela mesma cadeira de sol. Nenhum deles preenche, mas já são minha história. E ah, que história...
Na minha infância, engraçada e saltitante infância, eu e as crianças da rua não costumávamos brincar com videogame, computador e muito menos jogos eletrônicos, não porque não gostássemos, porque até queríamos muito, mas isso era algo para quem tinha dinheiro no início do séc XXI, na cidade de Jardim do Seridó interior do RN. Então amávamos brincar de trica-cola, piu, esconde-esconde, doidinho...Dentre todas essas brincadeiras uma tinha todo um ‘C’ de competitividade aguçado eram as famosas “flores de defuntos.”
Achou estranho? Pois para nós era a coisa mais normal e divertida que existia. Era tradição na cidade. Um defunto morria e as senhoras mandavam as crianças buscarem as flores para enfeitarem o caixão, quando chegávamos para visitar um defunto o cheiro de flores naturais chega nos deixava enjoados. Mas era de praxe. Ficávamos fazendo cera ao enfermo, esperando a hora de sua morte para corrermos pelos terreiros com uma bacia de lavar roupas debaixo do braço por todo o bairro em busca de flores para enfeitar o caixão do falecido. Vencia quem trouxesse mais flores e chegasse mais rápido de volta para a casa do defunto.
Um dia, um dos vizinhos da minha tia estava enfermo,e claro, eu e meus primos passamos a tarde na casa dele. As senhorinhas rezando, a quase viúva chorando e a gente no terreiro, tentando brincar de piu. Um mix de :
-Ave Maria, cheia de graça o Senhor é convosco...-Piu!!!
-É você agora o piu!hahahha!!!Nem me pega!!!- Dizíamos isso e logo o barulho que causávamos era reclamado por nossas mães.
Lembro-me que quando vovó disse:
-É, ele foi um bom vizinho e muito trabalhador, apesar de ter sido raparigueiro e ter tido dois filhos fora do casamento Mariquinha num tem do que reclamar.
Eu saí correndo para a casa de vovó passando direto para a área de serviço onde tinha uma bacia verde musgo média, não hesitei, propicia para o meu tamanho peguei-a e sai em disparada. Meus primos então perceberam que o velho tinha morrido e começaram a gritar:
-Ah!! Assim não vale!! No roubo todo mundo ganha!!!
Eu desci a rua que nem bala pegava e do alto observei a casa de Maria raparigueira( deixo por conta da imaginação de vocês o porquê desse apelido) onde tinha um lindo pé de rosa amélia. Eu não pedi nem permissão a Maria e fui logo arrancando, confesso que sai machucada, levei umas duas espetadas dos espinhos, mas nada que uma boa lambida no sangue para cicatrizar(ouvi do meu pai uma vez que isso fazia bem e já viu, criança acredita em tudo que o adulto diz) e me dá um ar de revigorada para voltar a disputa.
Enquanto terminava de pegar as quatro rosas vi que meus primos já se aproximavam, todavia não desanimei e corri para a casa de Chica de zeca e gritei do terreiro:
-ô de casa!?
Recebi de resposta:
- ô de fora!?
- Dona Chica, vou tirar umas flores para enfeitar o caixão de zezão que acabou de falecer.
-Ah,minha filha! Zezão morreu mesmo? Que Deus o tenha! Bem que Isaura disse que ele passava das 5 horas.Naquele momento eram por volta das cinco e meia da tarde, sei disso porque o relógio da Igreja do Sagrado Coração de Jesus tinha batido recentemente.Pode tirar sim, fique à vontade! E sua vó, como está? Fez o remédio de tamarindo que ensinei a ela?
- Ta bem, deve ter feito.
Tudo o que eu mais queria naquele momento era arrancar o mais rápido possível as flores e ir embora, porém por educação tinha que responder.
-Obrigada, dona Chica!!
-Por nada!
Nisso, vi que os meninos já estavam na outra rua e com as bacias bem cheias, enquanto a minha tinha bem pouquinho. Apressei meus pequenos passos e consegui encher a bacia com umas flores que nunca soube o nome, afinal só sabia reconhecer a 'amélia' porque uma vez levei duas espetadas e mainha disse "-bicha lesada, sabe que rosa amélia tem espinho, pra quê vai bulir no que tá queto?". Voltei correndo para a casa de Zezão e por sorte cheguei primeiro, sendo esse o único dia em que as flores do defunto foram colocados pelo fruto do meu suor e principalmente esperteza. Sim, esse era o prêmio da brincadeira.