cep 20.000

no metrô zona sul
de ouvidos fechados
ouvi uma pessoa declamando poesia

ele era
  homem
  branco
  limpo

declamou
  uma atrás da outra
    drummond
    leminski
  até uma
    dele mesmo

que poesia há
em suas palavras
  másculas
  brancas
  limpas?

    a poesia de ouvidos
    tão fechados quanto os meus.

bolso

me guarde no bolso da frente da tua minissaia rosa. me guarde bem apertadinho com a tua coxa. só deixe essa camadinha têxtil me separando do giz da tua pele. me guarde na esperança de que eu toque. que eu toque para te dizer "bom dia" sem saber que minhas palavras vibrarão em tua coxa. te fazendo pensar em como deseja a vibração nos lábios daquelas palavras. deseje sim, eles próprios a vibrarem ali. transpire, sue, ofegue. me guarde no pensamento do próximo toque. na expectativa da próxima visita. no sonho da próxima esquina. guarde no futuro, no bolso que guarda o papel, a expectativa do toque.

90 - 180 - 270 - 360

O globo gira em volta de seu eixo e me encontro parada no mesmo lugar. Não é somente mais um momento da vida, mas aquela que tomamos por donos. O destino, uma vez tão metodicamente traçado, se inicia. Um dois, quatro, quinze amores. Nomes que se confundem, histórias que se misturam. Já não se sabe mais quem ou como veio. Mas vieram. E ao seu ritmo e com as devidas marcas deixadas, se foram.
Gira (90).
Mede-se em graus o que jamais saberia dizer em tempo. Alguns vieram e perduraram o que eu diria ser meses e na verdade, duraram dias. A memória mais antiga, tal como confetes, aglomerava-se nas páginas. Até então, tímido e coberto de orgulho e rancor, eu não buscava entender o porquê. Eis em seguida alguém que me pareceu exótico. Me entreguei e quando vi, já não mais. Uma linha. I’m sorry my dear, but that’s all you get.
Meia volta (180).
E parte da mudança, tal almejada, veio. E que felicidade, meu velho amigo, que felicidade. Uma vitória tão minha como há muito não sentia. Independência? Prisão? Ainda não sei, tudo tão recente. Essa vitória me arrastou para o que parecia tão longe e irreal. Você retornou às lembranças e dessa vez, reconheci e te chamei pelo nome. No vazio e no lidar comigo mesma, busquei no passado tudo que não pudesse me deixar só e agradeci por pensar em você naquela hora. Cogitei tanto em te procurar. Escrevi postais nunca enviados. Busquei conchas nas praias de água doce e batizei com os nomes de cada um dos amores risíveis que lá criei, só para matar o tempo. Numa surpresa, aquele mesmo rapaz, nosso elo mais forte, me trouxe algo que não esperava mais encontrar. Um sorriso sincero, três noites de paz. Um pouco mais que um sussurro, uma felicidade tímida. E também, já não mais.
(270).
 Superei, porque eles, todos eles, nunca foram. Pensei hoje, num dos jogos que tanto faço entre as caminhadas, se eu escrevesse uma carta há cada concha. Um segredo sussurrado a se compreender somente quando encostadas no ouvido. Pessoal e compreensível somente a aquele a quem foi predestinado. Todos, tão curtos. Já a sua... a sua narrava o oceano todo.
A volta completa (360).
Um giro ao globo, para retornar ao mesmo lugar.

1964 - 2015

hoje avistei um jipe militar na orla de copacabana. era um domingo de sol, me disseram que ia dar praia e acreditei. desci de sunga e com a vontade de ser feliz e nada mais. pensei na inocência de um biscoito globo. mas, no meio do caminho, havia um jipe militar. um jipe sem capota, como que para um desfile qualquer, sustentando um moço qualquer de seus cinquenta anos com uma boina vermelha. aquela boina existia na época dos jipes militares? aquele moço existia na época dos jipes militares? na época dos jipes militares, eu não existia, mas existiam aqueles que me contaram as histórias de sangue e lágrimas. sangue vermelho, da boina vermelha, da aversão vermelha. sob gritos insensatos, sob brados dissonantes, caminhei. se não nós, quem mais há de caminhar em direção à praia? me tornaram surdo os gritos absurdos, me tornaram cego as letras ofensivas, mas não me tornaram mudo. caminhei porque temos de passar, temos de buscar o mar. talvez o quanto antes. ouvi verdades, ouvi mentiras, ouvi verdadeiras atrocidades. mas pude ver um jipe militar, bem parecido com o jipe do meu avô, mas sem a inocência dos jipes da roça. o motor rangia a autoridade dos generais, os faróis ditavam a violência, os para-choques declaravam as invasões, os pneus sustentavam as opressões. os jipes não permitem a discordância. o silêncio causado pelas buzinas era burro. burro. burro. burro. mas, em meio a tudo, caminhei porque temos de passar. caminhei, e do mar pude ver a avenida em fogo vivo. hoje, a princesinha do mar se reencontrou, inclusive, com seu tom monarquista. haviam boinas no lugar de biquínis, quepes no lugar de óculos escuros. hoje havia um jipe de guerra, em pleno domingo de sol pela avenida atlântica.

no leito

janelas de hospital são soberanas. sempre abertas para nos trazer os novos sopros da vida que é o lado de fora. limpar o ar carregado das ansiedades concentradas nas bolsas de soro, das preocupações aderentes dos esparadrapos, dos medos circulando nas veias ainda não encontradas. entram por entre os vãos milimétricos da grade de proteção, os sonhos mais banais que só temos quando nos deitamos em camas reguladas por controles remotos. um prato, um livro, uma calçada... de dentro da televisão, a voz funciona como um marca passo para nos percebermos ainda como parte de um mundo, mesmo como passivos telespectadores. pacientes. mas o que interessa aos olhos é a tela da janela. rompê-la, saltá-la, reencontrar-se com a realidade. um corpo rebelde ao entender que é necessário fugir do mito da caverna da morte. é necessário seguir. nessa tarde bucólica, nesse inverno que é quase um veranico, é fácil para um bem-te-vi se tornar um protagonista. ele chega manso, planando levemente e pousa no peitoril singing an old, old beatles song. silencia o mundo mono tonal ao redor de um monitor cardíaco. aquele pássaro rompe a monotonia da paisagem estática da janela. nos desafia. é a metamorfose de nossos sonhos múltiplos em um ser vivo, animal. aquele pássaro nos instiga. nos faz perceber que é preciso levantar vôo para também cantar. nos transformar em pássaro para voar no mundo que nos restar. cantar por outras janelas. it's a long way.