são dois corpos nus, lado a lado, pressionando as teclas de um piano. uma cena idealizada para quem a vê de fora, um mundo concreto para quem o vê de dentro. dessas cenas sem um porquê de acontecer, afinal, são só um casal juntos por mais um entardecer ao lado de um piano, como tantos outros já o foram. ele se levanta e escolhe notas ao acaso, enquanto ela entende o ato como um desafio e se posta ao seu lado. nenhum dos dois hesita qualquer pudor. você sabe tocar? não, ela responde com uma vergonha disfarçada. ele encontra dois acordes que soaram agradáveis aos seus ouvidos e percebe um olhar curioso. monta uma valsinha qualquer, os repete e fala docemente: é só fazer o que quiser com as teclas brancas. ela sorri e começa a tatear cegamente pelas teclas de marfim. seguem tocando a valsa torta para ninguém além dos dois.
risos se mesclam ao ambiente.
brincam de achar padrões, de se descobrirem em timbres. mas, a medida que se conhecem musicalmente, uma aflição os contamina: qual será a próxima nota? ela rapidamente se entedia em seguir regras que desconhece - por que somente as teclas brancas se temos todas as outras? por que tamanha limitação? - e começa uma aventura perigosa pelo mundo negro dos sustenidos e bemóis. claramente aquelas andanças bicolores não soam atraentes ao mundo externo, mas, lembrem-se, aqui falamos do mundo concreto dos dois, do qual eu e você não entendemos nada de sua beleza.
respirações se mesclam ao ambiente.
ele entende cada dó sustenido fora do tempo como um convite para definir uma estrutura musical. sente-se importante, monta uma estratégia em sua cabeça e torce para que ela perceba os toques propositais do seu corpo no dela. os cotovelos e ombros sendo sempre a guiada delicada de sua mão direita, enquanto a cadência do tocar dos pés e das coxas são definidos pelo ritmo de sua mão esquerda. se embaralha com toda a coordenação motora exigida e erra por algumas vezes o tempo, mas sua parceira não percebe.
arquejos se mesclam ao ambiente.
ela percebe o mundo o suficiente para compreender os toques e desejar as mãos que os produzem. continua desobediente e, agressivamente, lança sua mão esquerda para começar compor as canções do corpo. a sua direita permanecia no piano reproduzindo um padrão de sol, lá e dó que havia encontrado a pouco. com a outra, acaricia as harpas dos cabelos dele ao mesmo tempo que as notas. eles se transformam em som. dois pares de olhos fechados em um diálogo lascivo composto de notas musicais. o volume se instaura em uma crescente, o grave se torna forte como o esperado e o agudo ganha a agilidade nos mesmos sol, lá e dó. a música sobrevive até seu último suspiro e num contratempo qualquer ela é interrompida por um prensar de várias teclas. o piano grita desafinadamente para que fiquem e silencia. uma última súplica dele, que havia ganhado afeição por aqueles dois corpos nus.
nesta tarde, aquele piano descobriu melodias que nunca pôde compor e permaneceu aberto como se as admirasse ao som ambiente.
Meus filhos são os abortos que nasceram dos homens
pois meu ventre não é mangedoura nem berço para crianças
eu quero que todos saibam e me possuam
pois ninguém é dono de mim
eu sou a filha da dispersão e a mãe da angústia
a todos dou minha beleza mas a nenhum dou meu amor
e quero ser assim por todos os aeons que virem
serei eu abusada por todos os homens por todos meus orificios
pois eu sou hoje aquilo que não terás amanhã,
a bela jovem senhora do desespero
aquela que traz a paz para depois tirar
o engano no caminho daquele que busca seu pai no meio da noite
eu sou quem anuncia a coruja e o reencontro com o sol
eu não gosto mais de voce
eu gosto de um fantasma
que suga minha alma todos os dias
que me faz fumar mais do que o normal
que me faz beber e passar mal
que me faz buscar deus mais uma vez
eu não gosto mais de voce
e ao mesmo tempo te quero
sabendo que não é mais quem eu penso,
é alguem que eu conheci um dia
é alguem que eu conheci a noite em uma praia vazia
é alguem que eu conheci e agora é memória
Não mais nesta encarnação
nos veremos novamente
nos mesmos gestos
nos mesmos cafés,
nos mesmos lugares onde passamos
ao mesmo tempo eles estão empregnados pela sua imagem
maldito fantasma que eu amo
paulo, aos 26 anos, havia fracassado. pensava isso enquanto tentava conectar os cabos do monitor novo que comprara para assistir a uma série qualquer. aquele espaço minúsculo que chamava de casa mas, na verdade, era um mero conjugado com tacos soltos que teimavam em dar-lhes topadas nos pés. claustrofobicamente posto no maior bairro do rio de janeiro, orgulhava-se por nunca ter mergulhado no mar. saboreava este orgulho da mesma maneira com que dizia só escutar música brasileira. culpava a areia, mas escolhia ignorar os papéis esquecidos pelo chão. culpava a preguiça e gastava horas somente olhando horas. paulo havia fracassado por ter sido incoerente. consigo, comigo, contigo. paulo pensava isso enquanto sintonizava o monitor no hdmi 4. paulo havia fracassado aos 15 anos quando todo o seu destino fora traçado numa caminhada, na avenida movimentada da cidade interior, de volta para casa. se soubesse disto, no resto de sua vida não teria feito nada de diferente. continuaria saindo de casa aos 18 anos. se enganaria de amor por todas as vezes mais. embarcaria em todos os ônibus pelos quais esperou. mas, se pudesse, teria apenas naquele dia, demorado mais a voltar para casa. ele tinha fome, mas era mesquinho e não quis gastar 10 big bigs em um fandangos vermelho. o tempo de 5 biscoitos. se fosse... mas foi, então, um retorno para casa conversando, com fome e alimentando-se de sonhos. paulo pensava nisso enquanto escolhia o que assistir. a construção de sonhos inocentes que ignoravam toda a complexidade contida em duas vidas. sua ascenção e queda por um efeito borboleta que carregava em seu bolso e usava como troco em tudo que o trouxera até aqui. até um aplicativo de streaming que falhava miseravelmente em predizer seu gosto real. até o seu fracasso. paulo pensara que havia fracassado enquanto apertava o play. havia escolhido uma série qualquer.
nos perpetuamos, enfim, desbravadores. os mares perderam os monstros que nos metiam medo; as florestas e desertos cederam espaço para rodovias; por vezes as nuvens se tornam poeiras sob nossos pés. fomos tão audaciosos que até por baixo de prédios, pares de sapatos e mendigos dormindo viajamos sem sequer nos sujar de terra. não temos mais medos de grandes quilometragens. afinal, o que se tornaram os quilômetros senão linhas retas num mapa apresentado na tela de um computador de bordo? reaprendemos a calcular distâncias utilizando horas, dias no máximo. mas, se agora habitamos o reino do em breve, daqui a pouco, até amanhã, o que fazer com as palavras do tempo? onde ficam as palavras como infinito, sempre, nunca, perene? pois estas já não servem como nossas novas unidades de medidas. estas palavras, a partir de agora, ganham novos contornos e se tornam um território selvagem, inóspito e que em nós, bandeirantes preguiçosos, nos mete medo. tornou-se perigoso explorar estas terras quando municiado apenas com a leviandade do instantâneo, a pressa pelo amanhã. bichos e feras nos espreitam, guardando um bote certeiro de frustrações e traumas, ao invadirmos seus reinos despreparados. é necessário um facão afiado com coragem e coerência para poder adentrá-las. saber silenciar o tempo e ter a calma para escutar cada uma de suas letras sendo pronunciadas pelo frescor de suas matas. ouvir os silvos de seus pássaros, observar os feixes de luz vencerem por entre o balançar das folhas. contemplar nós mesmos. os que tentam vencê-las são os bandeirantes do tempo. desinteressados pela distância horizontal, buscam sim a vertical, a profundidade em nós mesmos. a profundidade infinita na queda livre por entre singelos olhares trocados. encontram as velhas novas escrituras e as decifram. não precisam mais dizê-las aos quatro cantos, mas fazem-se sábios trazendo dentro de si todos os seus significados. trazem dentro de si distâncias enormes. silenciosamente enormes.