Salto

conto as vezes em que te vi
como quem conta histórias da infância
  da minha terra
  da sua adolescência
  
conto as vezes em que te vi
feito carmelita nas contas de terço
  em êxtase com a reza de agora
  na agonia da benção da próxima prece
  
conto as vezes em que te vi
nesses quatro poemas vermelhos
  de uma manhã cinza
  sem a paz dos dias que não te conheceram

conta a única vez que te vi
reduzindo-a em aurora
  espalhada em tua imagem pela manhã
  por conta dos sonhos da última noite

você vira as costas
sorrindo pra me fazer esquecer
que te vi chegar
com medo de fechar a porta

Face a Face

Quando nasci, um anjo reto
desses de grandes auréolas
tentou me avisar: Vai, Bernardo! Respire!

Deus cortou-lhe a língua.
O anjo emudeceu e não disse nada.
Olhou-me nos olhos e
depois de meu berro romper o mundo,
lágrimas romperam-lhe a face.

Chorou mudo
lágrimas vermelhas
protegidas pela placenta.

Meu Mar

Meu mar sabe é teimar.
Bate contra pedras,
dobra suas ondas,
vive em seu fluxo e refluxo
de luta.
A luta contra o que é estático.

Meu mar é a resistência
contra o que é árido,
contra o que é seco,
contra as terras não beijadas
pelas palavras.

Meu mar é mãe do vento,
do carregar que leva embora
todo aquele ar morno de padrão de vida.
  o trânsito
  o trabalho
  o engarrafamento
  os ternos
  os óculos escuros

Tudo lavado pelo levar da
  marítima
    astuta
      bendita
        calma
          e doce brisa do meu mar.

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças

Penso no que teria que juntar para te esquecer. Olho pela casa enxergando objetos colecionáveis da nossa história. Percebo que perderia metade da minha biblioteca já que voltei a ler para te impressionar. Você não sabe, mas eu vi seus olhos para aquele seu amigo de São Paulo que te visitou falando dos livros de João Cabral de Melo Neto. Queria aquele olhar só para mim e comecei a ler compulsivamente. Talvez seja necessário até esquecer como se lê, já que até hoje tenho esse sentimento em mim. Pôr-do-sol seria um outro grande problema a se resolver porque qualquer luminosidade já tendendo para o laranja me faz lembrar daquele dia no Parque da Cidade. Falando em cidade, Niterói teria que sumir do mapa. Provavelmente algumas ruas de Friburgo iriam juntas e definitivamente toda Santos e São Paulo. Veja bem, não te esquecer significa evitar uma série crise econômica e geográfica no Brasil. No âmbito internacional, infelizmente perderíamos toda a Espanha e casal nenhum poderia tomar champagne no topo da Torre Eiffel durante o inverno, mesmo que nós nunca tenhamos feito isso. Quantas pessoas também sumiriam? Iria me sentir um homicida compulsivo ao acordar e ver que perdi amigos, familiares, conhecidos e até o cara que pega pão e já te deu uma cantada de pedreiro. Perderia também meu antebraço direito que manchei com tuas memórias e, por consequência, pararia de escrever. Ao te esquecer, perderia toda uma década. Não lembraria da minha primeira vez, dos anos da faculdade, das viagens que fiz. Minha nova lembrança mais recente seria só o final de Digimon. Nem minha formatura na oitava série - veja só que absurdo - eu teria já que você a inundou em fotos com meu melhor amigo na época. Perderia minhas convicções políticas porque não lembraria de nossas discussões e possivelmente me tornaria um direitista. Pergunto-me se eu leria a Veja. Mas, em algum momento, sei que veria seu nome sob o título de grandes reportagens dos grandes jornais. Mas, pensando bem, já teria desaprendido a ler mesmo, então esse item não faria a menor diferença. Desaprenderia a tocar violão, fazer pizza e beber vinho. Não poderia ouvir música de qualidade já que você levaria embora todos os bons versos e até no ruim que sobrou eu teria que ser seletivo dado o seu peculiar gosto pelo tecno brega e Valesca Popozuda. Talvez eu tenha que esquecer a minha avó por saber que a última lembrança que tenho dela é a de você a alimentando no hospital. Paro de pensar e realizo que ficaria sem nada se tivesse que te esquecer. Sobraria bastante da infância, um paraíso ainda não tocado por você. Percebo isso tudo e desisto de te esquecer. Percebo que é melhor viver o nada de não te ter cheio do tudo que me lembra você. Percebo que só queria poder esquecer de te esquecer.

o eco e a pergunta

dorme bem
já faz tanto tempo que não durmo contigo
entre meus lábios,
tristeza

    você foi, mas deixou a mágoa
        a cicatriz

    você reverbera cada vez mais como
        um sonho bom

    estou cansado de me perguntarem
            estou feliz?